segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Fronteiras da Insanidade

Em seu mais recente trabalho, Almodóvar aborda de forma contundente os limites do desejo e o uso do conhecimento científico no intuito de se haver com a dor – ou fugir dela

Por Érica Renata de Souza,
doutora em ciências sociais e mestre em antropologia social

Da Revista Mente & Cérebro n° 228, Janeiro/2012, págs. 14/15


É possível amar ou odiar o mais recente filme do diretor Pedro Almodóvar. A pele que habito . Ou, como disse alguém na sala de cinema, acreditar que o filme seja “uma viagem”. Mas é certo que dificilmente alguém fica indiferente ao que vê na tela. O pano de fundo da trama incorpora temas do século 21, como a (re)construção do corpo pela medicina, e pelas novas tecnologias. Nesse cenário, as supostas (e questionáveis) oposições entre humanidade e animalidade, lucidez e loucura, presente e passado, arte e realidade, ética e amoralidade, biologia e tecnologia, natureza e cultura e até mesmo vida e morte revelam suas intensas relações nos corpos e nos desejos dos personagens.

Numa sinopse reducionista, poderíamos dizer que se trata de um filme sobre um médico que perdeu pessoas importantes na vida e que essa história o levou à insanidade. Ele trilhou caminhos inesperados para sublimar sua dor, o que causou graves conseqüências para aqueles que atravessaram seu caminho, e chegou a utilizar uma cobaia humana para seus experimentos. Contudo, tratando-se de Almodóvar, seria uma injustiça reduzir o filme a esse enredo.


O médico Robert Ledgard, interpretado por Antonio Banderas, é um homem que carrega as marcas de um passado conturbado e as transforma em ações que revelam um presente no qual lucidez e loucura não têm fronteiras e os corpos definem vidas e identidades. E não se trata de corpos predeterminados pela biologia, mas sim construídos e experienciados a partir dessa construção. A cor vermelha, como sempre acontece nos filmes de Almodóvar, faz parte das cenas, representando não apenas a paixão e o erotismo, mas também a vida e a morte. Nesse sentido, o corpo construído transita entre o foto e o sangue, o DNA e a técnica. A pele não mais demarca a individualidade ou a distinção entre o indivíduo e os outros – mas em relação a si mesmo.

Vera, a moça reclusa, vivida por Elena Anaya, é uma projeção do amor perdido por Robert – ocupa o espaço abeto em razão de sua semelhança física com a mulher falecida do médico. Essa similaridade, percebida e comentada por outros personagens, ganha outra dimensão na relação dos protagonistas e se concretiza numa transformação radical que satisfaz o anseio de Robert: construir uma representação física que ocupe um espaço concreto deflagrado pela dor. Nesse sentido, ele cria um corpo e um espaço materiais para Vera, como se forjasse um mundo particular capaz de abrigar seu desejo. É algo, porém, que excede os limites do suportável, para Vera e também para a fiel e resignada Marília, vivida por Marisa Paredes, que, ilusoriamente, quer a morte de Vera para que os contornos do tolerável reapareçam.

O luto e as formas muito particulares de cada personagem vivenciá-lo tecem o enredo. Marília vive intensamente sua resignação em relação às próprias escolhas; Robert tenta aplacar sua angústias e busca vingança; Vera vê na mutilação uma forma de negar sua atual condição e talvez de se punir, mas não desiste das suas vidas; nem daquela que lhe foi imposta nem da que tinha antes de seu caminho se cruzar com o do médico.

Uma primeira leitura poderia levar a crer que, na fantasia de cada personagem, soluções pontuais satisfazem SUS necessidades, em detrimento das vontades do outro. Os códigos sociais e morais são ignorados e f favor de ações individuais que transgridem o coletivo e a norma. Contudo, essas ações individuais só são possíveis porque o contexto as permite ou favorece. Ao mesmo tempo que a sociedade não compreende as ações que rompem a lei, também oferece possibilidade para o surgimento de tais atos.

Em outras palavras, a sociedade que produz e é produzida por regras e indivíduos que devem se conformar a elas é a mesma sociedade que cria e é criada pelos indivíduos que as transgridem. Essas pessoas – bem como as conseqüências de sua atitudes – parecem ser alocadas na fronteira borrada entre lucidez e loucura, altruísmo e egoísmo, numa tênue separação entre o eu e o outro. E, se esses indivíduos são produzidos pela mesma sociedade que os condena, suas ações têm, também, caráter social, pois fora daquele contexto cultural dificilmente conseguiriam reproduzir os mesmos atos. Numa sociedade em que o amor romântico e a monogamia não fossem “imperativos para a felicidade”, por exemplo, Robert Ledgard teria dado outros rumos à sua vida e à de Vera. As histórias dos personagens em A pele que habito fazem parte da história ocidental, de práticas, sentimentos e sentidos que a constituíram – ainda que sejam reconhecidos como filhos ilegítimos dessa mesma história. Contudo, tratando-se de Almodóvar e do cenário contemporâneo, a fronteira entre realidade e ficção é mais uma oposição a ser questionada.

A PELE QUE HABITO • 117 minutos - Espanha, 2011 • Direção: Pedro Amodóvar • Elenco: Antonio Bandeiras, Elena Anaya, Marisa Paredes, Jan Cornet

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