As drogas acionam o sistema de recompensa do cérebro, uma área encarregada de receber estímulos de prazer e transmitir essa sensação para o corpo todo. Isso vale para todos os tipos de prazer - temperatura agradável, emoção gratificante, alimentação, sexo - e desempenha função importante para a preservação da espécie.
Evolutivamente o homem criou essa área de recompensa e é nela que as drogas interferem. Por uma espécie de curto circuito, elas provocam uma ilusão química de prazer que induz a pessoa a repetir seu uso compulsivamente. Com a repetição do consumo, perdem o significado todas as fontes naturais de prazer e só interessa o prazer imediato propiciado pela droga, mesmo que isso comprometa e ameace sua vida.
Mecanismo Geral da Dependência
Drauzio – Que mecanismo do corpo humano explica o processo de dependência da droga?
Ronaldo Laranjeira – Acho importante destacar que existe, no cérebro, uma área responsável pelo prazer. O prazer, que sentimos ao comer, fazer sexo ou ao expor o corpo ao calor do sol, é integrado numa área cerebral chamada sistema de recompensa. Esse sistema foi relevante para a sobrevivência da espécie. Quando os animais sentiam prazer na atividade sexual, a tendência era repeti-la. Estar abrigado do frio não só dava prazer, mas também protegia a espécie. Desse modo, evolutivamente, criamos essa área de recompensa e é nela que a ação química de diversas drogas interfere. Apesar de cada uma possuir mecanismo de ação e efeitos diferentes, a proposta final é a mesma, não importa se tenha vindo do cigarro, álcool, maconha, cocaína ou heroína. Por isso, só produzem dependência as drogas que de algum modo atuam nessa área. O LSD, por exemplo, embora tenha uma ação perturbadora no sistema nervoso central e altere a forma como a pessoa vê, ouve e sente, não dá prazer e, portanto, não cria dependência.
Vários são os motivos que levam à dependência química, mas o final é sempre o mesmo. De alguma maneira, as drogas pervertem o sistema de recompensa. A pessoa passa a dar-lhes preferência quase absoluta, mesmo que isso atrapalhe todo o resto em sua vida. Para quem está de fora fica difícil entender por que o usuário de cocaína ou de crack, com a saúde deteriorada, não abandona a droga. Tal comportamento reflete uma disfunção do cérebro. A atenção do dependente se volta para o prazer imediato propiciado pelo uso da droga, fazendo com que percam significado todas as outras fontes de prazer.
Drauzio – Você diz que a evolução criou, no cérebro, um centro de recompensa ligado diretamente à sobrevivência da espécie. As abelhas, quando pousam numa flor e encontram néctar, liberam um mediador chamado octopamina, neurotransmissor presente nas sensações de prazer. Esses mecanismos são bastante arcaicos?
Ronaldo Laranjeira – O sistema de prazer é muito primitivo. É importante para as abelhas e para os seres humanos também. A droga produz efeito tão intenso porque age nesses mecanismos biológicos bastante primitivos.
Drauzio – Mecanismos tão arcaicos assim representam uma armadilha poderosa. Na verdade, provoca-se um estímulo forte que está mexendo com milhares de anos de evolução.
Ronaldo Laranjeira – Acho que estamos cada vez mais valorizando esse tipo de mecanismo. A droga é um fenômeno psicossocial amplo, mas que acaba interferindo nesse mecanismo biológico primitivo.
Paranóia Associada ao Consumo de Drogas
Drauzio – A paranóia é um efeito terrível da cocaína. O indivíduo cheira e entra numa crise persecutória alucinante. O que leva alguém a usar uma droga sabendo que irá provocar uma sensação medonha, que nenhum prazer oferece?
Ronaldo Laranjeira – Essa é a essência da dependência química de uma droga. Primeiro aparece o efeito prazeroso e, depois, o desprazer. Com a cocaína, isso é mais intenso. Seu efeito de excitação e de prazer é imediato, ocorre em poucos segundos. Alguns minutos depois, desaparece e surgem os efeitos desagradáveis. Confrontando os dois, prevalece a lembrança dos bons momentos e a pessoa volta a usar a droga. Tive um paciente que injetava cocaína. Suas veias tinham sumido, mas mesmo assim ele não desistia. Expunha-se ao tormento de dezenas de picadas para obter um único resultado positivo que, em sua balança emocional, compensava o sofrimento anterior. Os fumantes têm comportamento parecido. Muitos, mesmo com traqueostomia, não deixam de fumar.
Drauzio - Conheci alguns que, apesar da insuficiência vascular cerebral, ficavam tontos e caíam no chão quando fumavam, mas não desistiam e, logo depois acendiam um cigarro outra vez.
Ronaldo - É a força da dependência, um fenômeno diversificado cuja essência é a disfunção cerebral provocada por várias drogas e que se manifesta em pessoas de personalidades diferentes.
Drauzio - A maconha também pode provocar paranóia?
Ronaldo – É menos comum, mas casos de paranóia também ocorrem especialmente em pessoas que já apresentaram algum problema mental. Quem tem um surto psicótico e fuma maconha, por exemplo, faz um péssimo negócio, porque se intensificarão os sintomas dessa doença já estabelecidos anteriormente.
No que se refere à cocaína, nem todos que manifestam esses sintomas desenvolverão a síndrome paranóica. No entanto, quando isso acontece, as conseqüências são desastrosas. Soube de um usuário de cocaína que, em crise, saiu em disparada por uma estrada, foi atropelado e morreu. Há outros que pegam uma arma e disparam a esmo.
Força Poderosa da Dependência
Drauzio – Muitos usuários garantem que a maconha é uma droga fácil de largar, que não causa dependência. Isso é verdade?
Ronaldo Laranjeira – Cada droga tem um perfil de dependência, e a maconha não é muito diferente das demais. Como já foi dito, atualmente ela está dez vezes mais forte do que era há 30 anos. Por isso, não é tão fácil afastar-se dela, principalmente se a pessoa começou a fumar na adolescência, quando ainda era um ser em formação.
O acompanhamento de usuários de maconha, no ambulatório da Escola Paulista de Medicina, sugere exatamente o contrário. As pessoas conseguem suspender o uso da droga durante alguns dias, mas a vontade fica incontrolável e elas voltam a fumar os baseados.
Drauzio – No Carandiru, examino rapazes com tuberculose que fumam cigarros de nicotina, de maconha e crack. Explico-lhes que eles não podem fumar de jeito nenhum porque seus pulmões estão doentes, muito inflamados. Na semana seguinte, eles me informam que conseguiram suspender o crack e a maconha, mas o cigarro está difícil. Isso se repete nas semanas subseqüentes. Tive centenas de casos como esse, que me convenceram de que o cigarro é mais difícil de largar do que as outras drogas. Estou exagerando?
Ronaldo Laranjeira – Embora o efeito da nicotina não seja tão poderoso quanto o da maconha, é muito mais constante. Imaginemos que o fumante dê dez tragadas em cada cigarro e fume vinte cigarros por dia. Feitas as contas, num único dia seu cérebro recebeu um reforço positivo pelo menos duzentas vezes. Cada tragada é igual a uma injeção de nicotina na veia. Esse estímulo, repetido através dos anos, faz com que a dependência de nicotina seja mais poderosa do que as outras. A maconha, no momento, passa por processo semelhante. Mais disponível e mais barata, seu consumo aumentou e, conseqüentemente, o número de cigarros fumados por dia e os estímulos cerebrais que provocam aumentaram também. Portanto, em termos de dependência, as duas drogas não diferem muito. Pelo atual padrão de consumo, mais fácil, accessível e intenso, maconha e nicotina têm muito em comum. Por isso, não compartilho a idéia de que maconha seja uma droga leve.
Drauzio – O usuário de cocaína diz que deixará de usar a droga quando quiser. No entanto, admite que não poderá vê-la porque entrará em desespero e a vontade de consumi-la fica incontrolável. Como se pode explicar esse fenômeno?
Ronaldo Laranjeira – Ficar longe da droga, quando se está disposto a abandoná-la, faz parte do processo de aprendizado. No exato instante em que a pessoa vê a cocaína, seu cérebro começa a preparar-se para recebê-la e dispara um mecanismo que chamamos de craving ou fissura. Isso vale para qualquer droga. Depois que ficou dependente, é quase impossível alguém ver a droga e resistir ao desejo de usá-la. Por isso, na fase inicial do tratamento, aconselha-se que se afaste completamente de todos esses estímulos, pois ficará menos difícil lidar com o fenômeno da dependência química.
Dependência é um Processo de Aprendizado
Drauzio – A maioria das pessoas bebe com moderação, mas algumas fazem uso abusivo do álcool. Há quem fume maconha ou use cocaína esporadicamente, mas existem os que fumam crack o dia inteiro. O que explica essa diferença? A resposta está na droga ou no usuário?
Ronaldo Laranjeira – Parte da resposta está na tendência ao uso crônico e na história de cada pessoa. Quando começou a usar? Como interpreta os sintomas da síndrome de abstinência? Além disso, o que vai fazer com que repita a experiência não é só a busca do prazer, mas a tentativa de evitar o desprazer que a ausência da droga produz.
A dependência é um processo de aprendizado. O fumante, por exemplo, pela manhã já manifesta sintomas da abstinência. Fica irritado e sua capacidade de concentração baixa. Ele fuma, o desconforto diminui. Vinte minutos depois, o nível de nicotina no cérebro cai, voltam os sintomas da abstinência e ele vai aprendendo a usar a droga pelo efeito agradável que proporciona e para evitar o desprazer que sua falta produz. A dependência é fruto, então, do mecanismo psicológico que a um só tempo induz o indivíduo a buscar o prazer e evitar o desprazer e das alterações cerebrais que a droga provoca. Essa interação entre aspectos psicológicos e efeito farmacológico vai determinar o perfil dos sintomas de abstinência de cada pessoa. A compulsão é menor naquelas que toleram a abstinência um pouco mais, e maior nas que a inquietação é intensa diante do menor sinal da síndrome de abstinência. Resumindo: a dependência química pressupõe o mecanismo psicológico de buscar a droga e a necessidade biológica que se criou no organismo. Disso resulta a diversidade de comportamentos dos usuários.
A maconha é um bom exemplo. Seu uso compulsivo hoje é maior do que era há 20, 30 anos e, de acordo com as evidências, quanto mais cedo o indivíduo começa a usá-la, maior é a possibilidade de tornar-se dependente. Como garotos de 12, 13 anos, e às vezes até mais novos, estão usando maconha, atualmente o problema se agrava. Além disso, as concentrações de THC (princípio ativo da maconha) aumentaram muito nos últimos tempos. Na década de 1960, andavam por volta de 0,5% e agora alcançam 5%. Portanto, a maconha de hoje é 10 vezes mais potente do que era naquela época.
Diante disso, a Escola Paulista de Medicina sentiu a necessidade de montar um ambulatório só para atender os usuários de maconha e há uma lista de espera composta por adolescentes e jovens adultos desmotivados, que fumam 6, 7 baseados por dia e não conseguem fazer outra coisa na vida. Isso não acontecia quando a concentração de TSH era mais fraca e o acesso à droga mais restrito.
Drauzio - Quando se conversa com usuários de maconha de muitos anos, eles lastimam que a droga tenha perdido a qualidade. Sua explicação prova exatamente o contrário. Terão essas pessoas desenvolvido um grau de tolerância maior à droga?
Ronaldo Laranjeira - Acho que a queixa é fruto de um certo saudosismo, uma vez que há tipos de maconha, entre eles o skank, que chegam a ter 20% de THC. Na Holanda, foram desenvolvidas cepas que contêm maior concentração desse princípio ativo, o que faz com que a maconha perca a classificação de droga leve e se transforme numa substância poderosa para causar dependência. Deve-se considerar , ainda, como justificativa da queixa que o uso crônico causa sempre certa tolerância.
Drauzio - No Carandiru, minha experiência mostra que há quem fume um baseado a cada 30 minutos. Uma droga que exija tal frequência de consumo não pode ser considerada leve, não é verdade?
Ronaldo Laranjeira – Infelizmente não existem drogas leves, se produzirem estímulo no sistema de recompensa cerebral. Em geral, as pessoas perguntam: mas se a droga dá prazer, qual é o problema? O problema é que ela não mexe apenas na área do prazer. Mexe também em outras áreas e o cérebro fica alterado. Diante de uma fonte artificial de prazer, ele reage de modo impróprio. Se existe a possibilidade de prazer imediato, por que investir em outro que demande maior esforço e empenho? A droga perverte o repertório de busca de prazer e empobrece a pessoa. Comer, conversar, estabelecer relacionamentos afetivos, trabalhar são fontes de prazer que valorizamos, mas não são imediatas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário