segunda-feira, 5 de julho de 2010

A Vitória dos Anos

A depuração das memórias e o uso da mente e do corpo são a melhor terapia para combater doenças degenerativas do envelhecimento


Poucas coisas são mais deploradas na cultura ocidental quanto o envelhecimento, sinônimo de fragilidade física e decadência mental. De fato, as grandes mudanças corporais que a idade traz são muitas vezes seguidas por doenças neurodegenerativas que terminam por conduzir à demência. Uma delas, a doença de Alzheimer, se caracteriza pelo acúmulo cerebral de neurofibrilas e placas compostas por proteínas tau e peptídeos beta-amiloides, respectivamente. A imunização contra peptídeos beta-amiloides é uma das possibilidades de cura desse distúrbio (Monsonego e Weiner, 2003, Science 302: 834-838).

Experimentos com camundongos transgênicos demonstraram que os déficits de memória que acompanha a excessiva produção de proteína tau podem ser revertidos pela interrupção da sua síntese (Santacruz et al, 2005, Science 309: 476-481). Boas notícias chegam ainda de estudos sobre os hábitos de gêmeos idosos nos quais apenas um dos indivíduos apresenta demência, os resultados indicam que a intensa atividade intelectual retarda o aparecimento do Alzheimer (Crowe et al, 2003, J.Gerontol Psycol, Sci. 58B: 249-255), reforçando a idéia de que o uso constante da mente e do corpo é a melhor terapia contra a erosão do tempo.

No entanto, mesmo superadas as patologias, o idoso parece fadado a deparar com limites inflexíveis. Dizia Luiz Fernando Gouveia Labouriau (1921-1996), primeiro bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e motor crucial da fisiologia vegetal no Brasil, que com o passar do tempo seu cérebro (poderoso, diga-se de passagem) parecia haver chegado ao limite de sua capacidade de armazenamento: para aprender o nome de um aluno novo, necessitava esquecer o nome científico de alguma planta. A brincadeira, proferida em tom sereno, expressava um leve inconformismo com o horizonte intelectual humano. Por ser um sistema finito, o cérebro possui um máximo de estocagem mnemônica, mesmo naqueles que escolhem exercitá-lo por toda a vida.

Mas se até o idoso mais sadio precisa contentar-se com a substituição de suas representações cognitivas em lugar da expansão mental fácil da juventude, que vantagem, utilidade ou beleza há na velhice? A resposta a essa pergunta importante encontra-se justamente na receptividade que Labouriau dedicava aos estudantes de todas as idades. Diante do dilema, ele optava por se desprender da memória querida – o nome de uma planta – para cuidar da germinação de mais um jovem cientista em potencial. O investimento do mestre era a fundo perdido, mas para ele a chance de sucesso bastava. A troca de nomes sempre valeu a pena, pois fertilizava o mundo.

Eis aqui a chave do enigma: a grande, incalculável riqueza do envelhecer é a depuração extrema dos pensamentos e atos. Não apenas carregar mais memórias, e sim memórias melhores. Por ser uma propriedade do tecido nervoso, essa depuração pode ocorrer em representações mentais de qualquer tipo, em qualquer ofício humano, a despeito do enfraquecimento de músculos e ossos. Quem duvidar que observe o jogo fabuloso dos legendários João Grande e João Pequeno, mais antigos e respeitados mestres da capoeira de Angola, ainda em atividade, praticantes há quase 60 anos da fina arte de mestre Pastinha. Homens idosos e brilhantes que facilmente derrotam qualquer jogador mais novo, por mais robusto que este seja, com o suprassumo da arte de se mover.

Daí o profundo valor atribuído aos velhos sábios, em tantas culturas do mundo. As melhores árvores espalham fortes sementes. Cabe a estas vingar.


Por Sidarta Ribeiro é neurobiólogo com Ph.D. pela Universidade Rockefeller e pós doutorado pela Universidade Duke. Atualmente é chefe de laboratório do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde investiga as bases neurais do aprendizado, comunicação, sono e sonhos.

Revista Mente e Cérebro, edição especial n° 21

Nenhum comentário:

Postar um comentário