Folha de São Paulo
JOÃO LOPES GUIMARÃES JÚNIOR e ILANA PINSKY
Parece legítimo questionar se cervejarias devem ter direito irrestrito de bombardear crianças e adolescentes com um forte assédio publicitário
Entre as cinco intervenções propostas em artigo recente da publicação "The Lancet" para lidar com a crise mundial de doenças não transmissíveis está a redução do consumo abusivo de bebidas alcoólicas. No Brasil, dados divulgados pelo Ministério da Saúde em abril mostram o aumento do percentual dos que bebem em excesso.
Diversos especialistas em saúde pública alegam ser impossível conceber uma política pública para reverter essa alarmante situação sem combater o estímulo exercido pela publicidade, especialmente a de cerveja, que associa seu consumo a imagens e situações atraentes, divertidas, bonitas ou eróticas.
Veiculada com impressionante frequência, especialmente na TV, a publicidade é capaz de interferir na liberdade de decisão de adolescentes e jovens adultos, por serem eles mais vulneráveis. No entanto, a proposta de proibir a publicidade de cerveja como medida útil para reduzir o alcoolismo vem provocando reação de s etores publicitários e de mídia, que alegam tratar-se de cerceamento de sua liberdade de expressão ou censura.
Será que esses setores corporativos têm razão? A interferência do Estado na economia não é novidade nem arbitrária; é bem-vinda como resultado da evolução do direito para conciliar o capitalismo com a promoção do bem-estar social.
Ora, como promover a saúde e o meio ambiente, por exemplo, sem controlar (quando possível) certas atividades que comprovadamente causam doenças ou poluem?
A imposição de algumas restrições às empresas se justifica, portanto, quando orientadas a proteger eficientemente e na justa medida interesses sociais valiosos.
A lógica é simples: o sacrifício de um direito passa a ser aceitável quando resultar na proteção de outro considerado mais relevante.
Parece-nos legítimo questionar se as cervejarias devem ter direito irrestrito a bombardear crianças e adolescentes com todo tipo de assédio publi citário -altamente sofisticado e persuasivo-, quando argumentos consistentes demonstram a gravidade dos problemas de saúde pública causados pelo álcool e a influência da publicidade sobre esses consumidores. Será que interesses empresariais devem, nesse caso, se sobrepor a interesses sanitários?
Ainda que se reconheça sua importância, a publicidade não pode gozar da mesma proteção legal que merecem as manifestações artísticas, literárias, políticas ou jornalísticas, pois os valores que justificam a defesa intransigente destas absolutamente não estão presentes na mensagem de fim comercial.
Cabe lembrar que, desde 1996, restringiu-se a propaganda de bebidas de alto teor alcoólico, sem que fosse abalado o prestígio de nossa democracia (quem não se lembra do famoso slogan que espalhava pelos meios de comunicação de massa o conceito de que beber cachaça era "uma boa ideia"?).
O que é inadmissível, em uma sociedade verdadeiramente democrática, é a prevalência de interesses econômicos quando está em jogo a saúde de jovens que são persuadidos diariamente a consumir bebidas alcoólicas.
JOÃO LOPES GUIMARÃES JÚNIOR é procurador de Justiça; foi promotor de Justiça do Consumidor.
ILANA PINSKY, psicóloga, é vice-presidente da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas).
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