sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Uruguai estuda legalizar maconha para combater traficantes


Folha de S. Paulo 
DO "NEW YORK TIMES", EM MONTEVIDÉU
 
A produção agrícola deste país inclui arroz, soja e trigo. Em breve, porém, é possível que o governo suje as mãos com uma cultura muito mais complicada, a maconha, como parte de um movimento crescente na região para buscar alternativas à guerra às drogas liderada pelos Estados Unidos.

O presidente uruguaio, conhecido por sua rebeldia, lançou seu primeiro chamado pela "legalização regulamentada e controlada da maconha" num plano de segurança anunciado no mês passado. Agora só se fala sobre os impactos potenciais da existência de um mercado formal daquela que Ronald Reagan certa vez descreveu como "provavelmente a droga mais perigosa da América".


"É uma mudança profunda de abordagem", falou Sebastián Sabini, um dos legisladores que trabalha sobre a proposta contenciosa anunciada pelo presidente José Mujica em 20 de junho. "Queremos dividir o mercado: separar os usuários dos traficantes, a maconha de outras drogas como a heroína."


Em toda a América Latina, líderes chocados com a difusão da violência relacionada às drogas estudam políticas que, no passado, teriam sido inconcebíveis.


Descriminalizar tudo, desde a heroína e cocaína até a maconha? Os Legislativos brasileiro e argentino acham que essa talvez seja a melhor maneira de permitir que a polícia foque sua atenção sobre os traficantes, ao invés dos viciados.
Legalizar e regulamentar não apenas o consumo de drogas, mas também o transporte delas, possivelmente impondo grandes taxas alfandegárias sobre os carregamentos a granel? O presidente guatemalteco, o ex-general do exército Otto Perez Molina, pediu a discussão dessa abordagem, enquanto líderes da Colômbia, do México, de Belize e outros países também pedem um debate mais amplo sobre o relaxamento das leis punitivas relacionadas às drogas.


O Uruguai elevou os experimentos a outro nível. Autoridades da ONU dizem que nenhum outro país até agora estudou seriamente criar um monopólio estatal totalmente legal da maconha ou de qualquer outra substância proibida pela Convenção Única da ONU sobre Drogas Narcóticas, de 1961.


Se a proposta fosse concretizada, converteria o Uruguai na primeira república mundial da maconha, passando à frente da Holanda, que desde 1976 ignora oficialmente a venda e o consumo de maconha, e Portugal, que em 2001 aboliu todas as penas criminais por consumo de drogas. Já no Uruguai, nasceria uma indústria estatal, criada por burocratas governamentais convencidos de que a oposição à maconha é algo ultrapassado.


"Em 1961 só havia televisão em preto e branco", disse Julio Calzada, secretário-geral do Comitê Nacional sobre as Drogas. "Hoje temos a internet."
Mas livrar-se do hábito da proibição não é tarefa fácil. Mesmo aqui, num país pequeno e progressista com 3,3 milhões de habitantes, a proposta do presidente enfrenta oposição. Médicos, rivais políticos, usuários de maconha e oficiais de segurança, todos já expressaram receios sobre como a maconha seria administrada e o medo de que a legalização, ou algo que se aproximasse disso, pudesse acelerar o problema crescente da drogadição e do crime no Uruguai.


José Mujica, 78, ex-guerrilheiro que se desloca num Fusca ano 1981, parece ter ficado surpreso com as reações. Ele disse este mês que, se a maioria dos uruguaios não entender o valor da legalização da droga, ele suspenderá o plano para definir melhor seus detalhes e procurar angariar apoio popular. Mas Mujica é um líder contestador que passou mais de uma década na cadeia como prisioneiro político. Ao mesmo tempo em que falou em adiar a medida, assinalou que pode não se dispor a desistir dela, destacando que os usuários de drogas "são escravizados por um mercado ilegal".


"Eles seguem o caminho da criminalidade porque não têm dinheiro e tornam-se traficantes porque não têm outro meio financeiro de satisfazer seu vício", disse o presidente.


Seu governo, que dispõe de uma maioria pequena no Congresso, está seguindo adiante com o projeto. Um dos assessores de Mujica disse este mês que o projeto de lei será submetido ao Congresso em questão de semanas, e Calzada, entre muitos outros, vem trabalhando arduamente. Sua mesa de trabalho está coberta de anotações manuscritas sobre mercados de droga locais. Tecnocrata de carreira e ostentando os cabelos longos de um roqueiro envelhecido, ele disse que vem calculando quanta maconha o Uruguai teria que cultivar para tirar os vendedores ilegais do mercado. Concluiu que, com cerca de 70 mil usuários mensais, será preciso colher pelo menos 2.200kg por mês. 


"Teremos que garantir que todos nossos usuários tenham acesso a um produto de qualidade", explicou.


Calzada acrescentou que outro desafio será o da segurança. Para proteger seu produto, os cartéis do narcotráfico o escondem e utilizam a ameaça sempre presente da violência. Autoridades uruguaias, incluindo Sabini um de vários legisladores a admitir abertamente já ter fumado maconha, pensam em permitir que usuários individuais cultivem maconha para seu próprio consumo não comercial, enquanto agricultores profissionais forneceriam o restante, cultivando-o em pequenas hortas que poderiam ser protegidas facilmente.


O governo exigiria que os usuários se cadastrassem para obter cartões de registro, visando manter estrangeiros à distância, ideia influenciada por uma política adotada recentemente na Holanda, que restringiu as vendas de maconha a moradores no país e rastrear e limitar as compras da droga pelos uruguaios (possivelmente a 40 cigarros de maconha por pessoa por mês, dizem as autoridades). Finalmente, seriam criados sistemas para regulamentar o nível de THC, o ingrediente ativo da maconha, e para cobrar impostos dos produtores. As regras seriam implementadas pelos órgãos que regulamentam tabaco, álcool e farmacêuticos.


As autoridades reconhecem que, para tentar derrotar chefões do tráfico como o mexicano Joaquin Guzmán, conhecido como Chapo, o Uruguai teria que cooptar antigos inimigos e unir-se aos mesmos dependentes de drogas que há anos vem mandando para a prisão.


Isso significa aproximar-se de pessoas como Juan Vaz. Programador de computadores, pai de três filhos e possivelmente o mais famoso ativista pró-maconha do país, Vaz passou 11 meses na prisão alguns anos atrás depois de ser flagrado com cinco plantas de maconha em flor e 37 mudas. Em entrevista, ele comparou a maconha ao vinho e expressou tanto interesse quanto receio em relação aos planos do governo. Disse estar satisfeito de ver a administração Mujica encarando o problema, mas, como muitos outros, afirmou temer o controle governamental.


O consumo pessoal de maconha já foi descriminalizado no Uruguai, de modo que Vaz, 45, disse que a ideia de criar um cadastro de produtores e usuários equivale a um retrocesso orwelliano. "Nos preocupa a violação de privacidade", ele disse.
Outros plantadores e fumantes, que exigiram não ser plenamente identificados para falar, pareceram mais interessados em participar do programa proposto. O traficante e consumidor Gabriel, 35, disse que acharia ótimo um mercado legal e espera que ele combatesse o lado mais sombrio do comércio de drogas.
Martin, 26, programador barbado cujo guarda-roupa cheio de plantas de maconha infunde um aroma singular a seu apartamento, disse que seus amigos vêm falando em criar uma pequena fazenda de maconha.
Gabriel contou que vende maconha ocasionalmente há 15 anos pouco mais de um quilo por mês e que as pessoas das quais compra a droga muitas vezes o pressionam para vender drogas mais perigosas, como a pasta de cocaína, uma substância semelhante ao crack que desde 2001 vem se espalhando enormemente pela região.
A pasta base, como é conhecida aqui, é vista amplamente como responsável pela alta recente na drogadição e criminalidade violenta no Uruguai, e Mujica disse que legalizar a maconha romperá o ciclo de dependência e delinquência que começa quando os usuários viram traficantes.
Muitas pessoas na comunidade do tratamento da drogadição têm dúvidas. "Nunca vamos nos livrar do mercado negro", falou Pablo Rossi, diretor da Fundação Manantiales, que possui vários centros de tratamento residenciais em Montevidéu.
Mas Gabriel opinou que os grandes traficantes se adaptariam. A dúvida é se isso teria consequências positivas ou negativas. Talvez eles começassem a vender a cocaína por preços menores, disse Gabriel, causando mais problemas. Ou, quem sabe, fossem expulsos completamente do negócio das drogas. Por enquanto, pelo menos, os traficantes parecem temer mudanças. De acordo com Gabriel, um quilo de maconha está custando cerca de US$ 470 hoje no Uruguai. Antes da discussão da proposta de legalização, o preço era US$ 375.
"Estão tentando ganhar o máximo possível de dinheiro", disse Gabriel. "Estão achando que a legalização é iminente."

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